Ainda estou vivo

Longa Doc, 2021
Cinema
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Ainda estou vivo

Longa-metragem, Documentário, 87', 2021

Sinopse

Em Rondônia, detentos participam de uma iniciativa radical de ressocialização. De dia, longe das celas, eles revisam seu passado e suas visões de mundo através de meditação, reiki, constelação familiar e outras terapias alternativas, nas quais ficam frente a frente com suas vítimas, numa busca angustiada por reconciliação. Mas à noite e nos fins de semana, retomam o cotidiano tóxico da penitenciária. Enquanto aguardam um novo espaço terapêutico, capaz de acomodá-los em tempo integral, mais um presídio é inaugurado, ameaçando a permanência de alguns integrantes no projeto.

Com

Alzimar Dantas Coelho, Elisabel Pappis Orso, Ivan Alves Dias, José Rodrigues Tejo, Marciano Alves da Silva, Marco Antônio Chaves da Silva, Maria Hercília Junqueira, Rogério Souza Araújo, Thiago Kincas de Souza

Visão artística

O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. No entanto, ao contrário desses países, nossa taxa de encarceramento continua subindo. Longe de ser eficaz no combate ao crime, os resultados dessa política de encarceramento em massa, que afeta predominantemente negros e pobres, são presídios superlotados, violações de direitos humanos, empoderamento de facções criminosas, rebeliões e massacres entre gangues.

Diz o ditado que "bandido bom é bandido morto". Simbolicamente, é como se a população carcerária já se encontrasse morta. Longe de nossa consciência social, reprimida e desumanizada, ela vive como mortos-vivos, em celas com condições mínimas de higiene, saúde, assistência legal ou educacional. Somente 0,17% dos recursos públicos são destinados a iniciativas de ressocialização, enquanto 70% são destinados à construção de novos presídios.

Como desconstruir tal mentalidade, que considera que é melhor ver morto quem está preso?  Para dar conta desse desafio, minha estratégia consistiu em humanizar a questão, enfocando um grupo de personagens, com uma atenção especial e crescente sobre um deles. Ao longo do filme, percebemos que o personagem principal vive atormentado pelo crime que cometeu e por questões que o afetam enquanto pai.

José teme ser uma figura ausente para o novo bebê que está a caminho. Para o seu filho de 4 anos, que o visita apenas na ONG, ele mente que não está na prisão, mas trabalhando e vivendo num tipo diferente de serviço. Já para seu filho mais velho, que está com a mesma idade de quando decidiu entrar para uma facção criminosa, José quer garantir que o primogênito não siga seu exemplo. Mas, para isso, precisa encarar o próprio passado, sua vítima, e lidar com o ressentimento do filho por ter estado preso e vivido longe de sua vida nos últimos nove anos.

Meu objetivo foi destacar as emoções dos personagens, seus dramas pessoais e familiares, suas dores e fantasmas. Eles se sentem confusos. Despedaçados por dentro. Mas estão tentando juntar os próprios cacos e retomar o controle de suas vidas. Eu queria trazer à tona a individualidade deles, suas lutas, num olhar empático e capaz de permitir que a espectadora ou o espectador se identificasse com eles, como antídoto ao estigma que os atravessa.

Para mim, ressocialização deve ser um processo de duas vias. Não se trata apenas de reintegrar os apenados à sociedade, mas também da sociedade ir em direção a eles. Se na fotografia do filme há tantos closes, se utilizo praticamente apenas uma lente, a 24-70mm, essa é a minha maneira de dizer que precisamos estar próximos, seja num sentido físico, ético ou político. Nós precisamos lutar pelos direitos deles, incluindo o de estarem vivos.

Isso significa lutar também por sua humanidade. Através do trabalho da ONG ACUDA (Associação Cultural e de Desenvolvimento do Apenado e Egresso), uma iniciativa baseada em terapias alternativas que valoriza a subjetividade e espiritualidade dos apenados, pude acompanhar o esforço dos personagens para transcender, tanto espiritual quanto socialmente. Vale dizer que esse esforço não é nada fácil, dado que os efeitos terapêuticos precisam ser maiores e mais efetivos que o contexto cotidiano da prisão, que a violência e a masculinidade tóxica que estruturou suas vidas durante tanto tempo. Leva tempo para desconstruir esse quadro de referências, e é por isso que o filme tenta respeitar o ritmo dos personagens e das situações.

A maioria das técnicas terapêuticas envolve um contato íntimo entre homens, como nas sessões de massagem ayurvédica. O corpo representa o campo de trabalho das terapias, a área de intervenção para se atingir a subjetividade dos apenados. Também representa a arena onde a Justiça opera, já que o objetivo principal de nosso sistema prisional é dominar esses corpos, maltratá-los, e assim determinar o lugar – social e psicológico – de quem é condenado.

Se eu enfatizo a imagem dos corpos no filme, é porque esse é o lugar onde uma disputa essencial se realiza: entre a opressão sistemática da Justiça versus os efeitos terapêuticos; ou entre a política de encarceramento em massa versus as iniciativas de ressocialização (ou, no limite, a discussão sobre a reforma do sistema penal). Não é coincidência, portanto, que o espaço que os corpos dos apenados deve ocupar é uma questão de disputa entre dois projetos antagônicos: o novo centro terapêutico que a ONG planeja construir, mas que enfrenta todo tipo de resistência para sair do papel, versus o novo presídio de segurança máxima, inaugurado em tempo recorde, em Rondônia.

Como argila, que tipo de forças deve afetar (moldar) esses corpos: uma força positiva, formativa, ou uma força negativa, deformativa? Eles devem ser modelados no confinamento de uma cela, ou num novo tipo de espaço? Que tipo de pessoa nós desejamos que saia da prisão (porque eles vão, inevitavelmente, sair): alguém que cultiva valores mais humanos ou valores tortos e desfigurados?

Sabemos, evidentemente, qual das forças está vencendo. Mas ao final do filme, minha esperança é a de que não haja dúvida sobre de que lado lutar.

André Bomfim

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